sábado, 5 de junho de 2010

Jesus era peripatético

Numa das empresas em que trabalhei, eu fazia parte de um grupo de treinadores voluntário.

Éramos coordenados pelo chefe de treinamento, o professor Lima, e tínhamos até um lema: “Para poder ensinar, antes é preciso aprender”.

Um dia, nos reunimos para discutir a melhor forma de ministrar um curso para cerca de 200 funcionários.

Estava claro que o método convencional de botar todo mundo numa sala, não iria funcionar, já que o professor insistia na necessidade da interação, impraticável com um público daquele tamanho.

Como sempre acontece nessas reuniões, a imaginação voou longe do objetivo, até que, lá pelas tantas, uma colega propôs usarmos um trecho do Sermão da Montanha como tema do evento.

E o professor, que até ali estava meio quieto, respondeu de primeira. Aliás, pensou alto:

- Jesus era peripatético...

Seguiu-se uma constrangida troca de olhares, mas, antes que o hiato pudesse ser quebrado por alguém com coragem para retrucar a afronta, dona Dirce, a secretária, interrompeu a reunião para dizer que o gerente de RH precisava falar urgentemente com o professor.

E lá se foi ele, deixando a sala à vontade para conspirar.

—Não sei vocês, mas eu achei esse comentário de extremo mau gosto—disse a Laura.

—Eu nem diria de mau gosto, Laura. Eu diria ofensivo mesmo—emendou o Jorge, para acrescentar que estava chocado, no que foi amparado por um silêncio geral.

—Talvez o professor não queira misturar religião com treinamento—ponderou o Sales, que era o mais ponderado de todos.

—Mas eu até vejo uma razão para isso...

—Que é isso, Sales? Que razão?

-- Bom, para mim, é óbvio que ele é ateu.

—Não diga!

-- Digo. Quer dizer, é um direito dele. Mas daí a desrespeitar a religiosidade alheia...

Cheios de fúria, malhamos o professor durante uns dez minutos e, quando já o estávamos sentenciando à fogueira eterna, ele retornou.

Mas nem percebeu a hostilidade. Já entrou falando:

-- Então, como ia dizendo, podíamos montar várias salas separadas e colocar umas 20 pessoas em cada uma. É verdade que cada treinador teria de repetir a mesma apresentação várias vezes, mas... Por que vocês estão me olhando desse jeito?

-- Bom, falando em nome do grupo, professor, essa coisa aí de peripatético, veja bem...

—Certo! Foi daí que me veio a idéia. Jesus se locomovia para fazer pregações, como os filósofos também faziam, ao orientar seus discípulos. Mas Jesus foi o Mestre dos Mestres, portanto a sugestão de usar o Sermão da Montanha foi muito feliz. Teríamos uma bela mensagem moral e o deslocamento físico... Mas que cara é essa?...

Peripatético quer dizer “o que ensina caminhando”.

E nós ali, encolhidos de vergonha.

Bastaria um de nós ter tido a humildade de confessar que desconhecia a palavra que o resto concordaria e tudo se resolveria com uma simples ida ao dicionário.
Isto é, para poder ensinar, antes era preciso aprender.

Finalmente, aprendemos. Duas coisas.

A primeira é: o fato de todos estarem de acordo não transforma o falso em verdadeiro.

E a segunda é que a sabedoria tende a provocar discórdia, mas a ignorância é quase sempre unânime.

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